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A revista ELLE e os pretos

14.9.10
Há uns dias comprei a Elle.
Adoro as revistas da época da rentrée. Parece que vêm com um novo fôlego, cheias de entusiasmo, artigos interessantes e uma lufada de ar fresco para soprar de vez com a silly season daqui para fora.
Comecei a ler a revista imbuída no espírito de descontracção de quem lê este tipo de revistas. Na página 80, a descontracção deu lugar à incredulidade. Depois à indignação. Telefonemas para cá, e-mails para lá, e afinal o assunto é mesmo chato, não é exagero da minha parte. Chato, para não dizer grave.
Num artigo sobre o novo tipo de mulher que está a ganhar espaço nas passerelles mundiais (manequins opostas à Kate Moss), o regresso das curvas e das formas, etecetera e tal, falam como sempre da Michelle Obama. As revistas de moda adoram a Michelle Obama. Porque o amarelo lhe fica bem, porque tem um ar atlético e principalmente por um grande factor: porque podia ser qualquer uma de nós.
Este artigo em geral revela vários erros de tradução, pesquisa pobre sobre o material sobre o qual se estava a escrever e escolhas linguísticas lamentáveis. Indignou-me particularmente o uso do termo "preta", visto que é um termo carregado de más vibrações, linguisticamente e socialmente falando.
Hoje escrevi um e-mail dirigido à jornalista que realizou o artigo. Mas não só a ela. Enviei também à directora, ao departamento da redacção e ao Correio do Leitor. Bolas, pensando bem agora, duvido que vá ganhar o Chanel n.º 5 que oferecem à melhor carta do mês.



No e-mail, eu disse o seguinte:


Ao cuidado da Ex.ma Sra. Marta Pablo, da Ex.ma Sra. Directora Fátima Cotta e da Redacção da Elle,

Como apreciadora da linha editorial da Elle há muitos anos e como leitora atenta, venho por este meio tecer alguns comentários relativamente a um artigo por si adaptado, na edição deste mês da mesma revista.

1 - O artigo que focava a nova feminilidade (páginas 78-80) foi escrito pela jornalista e editora de moda Robin Givhan e não pelo jornalista e editor de moda, como referiu a Sra. Marta Pablo. Uma breve pesquisa no Google, no sítio web Wikipedia ter-lhe-ia concedido imediatamente esta informação: é uma mulher, e não um homem.

2 - O artigo em questão trata-se visivelmente de uma tradução. Sabemos que uma tradução é má, quando conseguimos perceber que é uma tradução. E quando conseguimos “ler” o texto escrito na língua original por detrás do texto em português. Tendo em conta que a Sra. Marta Pablo não é tradutora, mas sim jornalista de moda, deveria das duas uma:
- ou ter confiado o trabalho de tradução/adaptação do artigo a um profissional da tradução;
- ou ter prestado mais atenção durante a sua tentativa de tradução.
Dou-lhe como exemplo a péssima tradução de middle aged woman, que a Sra. Marta Pablo traduziu como mulher de idade média. Ora, escusado será dizer que este termo não existe na língua portuguesa. Existiria eventualmente "mulher da Idade Média" (ou Idade Medieval) em que se refere a um período da História Mundial, situada entre o século V e o século XV. O termo correcto em português seria “mulher de meia idade”.

3 - Por último, a Sra. Marta Pablo por duas vezes usou, lamentavelmente, o termo “preto” no seu texto. Passo a citar:
Preta, 46 anos, Michelle Obama tem servido como um exemplo perfeito da verdadeira mulher de idade média americana.
e:
E porque é uma mulher preta de 46 anos, com um físico atlético, tem servido como um exemplo perfeito da verdadeira mulher de idade média e real consumidora.

Sendo uma consumidora acérrima de revistas, jornais e livros, leio milhares de páginas mensalmente. Nunca, repito, nunca li em algum lugar o termo “preta”, que certamente terá sido outra má tradução do inglês “black”. Qualquer pessoa minimamente informada, saberia que no mundo anglófono o termo "black” não tem o peso que o termo “preto” tem em português. A Sra. Marta Pablo, como jornalista, deveria saber que existe um longo caminho a percorrer entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Deveria saber, sendo originária ou vivendo num país com um historial difícil de colonização, que o termo “preto” tem uma conotação negativa, pejorativa e humilhante. A Sra. Marta Pablo terá todo o direito de usar o termo "preto" na sua vida pessoal, em conversa com familiares e com amigos, mas nunca, nunca, nunca deverá usar esse termo numa revista que tem como alvo mulheres bem formadas e, pasme-se, algumas delas serão eventualmente pretas. O termo politicamente correcto e socialmente aceite é “negra”.

Espero que estas considerações sejam construtivas para que a Sra. Marta Pablo possa continuamente melhorar as suas competências jornalísticas tendo em conta os seguintes factores: investigação e sensibilidade.

Desejo a todos os destinatários do e-mail os melhores cumprimentos,

Nome e Apelido Comprido


P.S.: Sou tradutora e negra. Tal como a Michelle Obama e a própria Robin Givhan. 

33 comentários:

  1. Complimenti rafa! Hai scritto benissimo (come sempre) e tutto ciò che esprimi denota la tua grande intelligenza, sensibilità e spirito critico!
    Sono certa che farai sempre più strada nel campo che più preferirai!
    Davvero complimenti!
    Un bacio grande!!

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  2. Rafaela, eu não posso acreditar que um artigo destes tenha saído numa revista que venda mais de dois exemplares. Que imbecil, essa Marta Pablo! Por favor, onde no mundo se viu uma coisa destas ?!?!?!?!!?!??!?!?!?! Haverá falta de pessoal com qualificaçõs para trabalhar em revistas dessa linha? Eu estou aqui boquiaberta com semelhante idiotice. Que falta de tacto, de sensibilidade, de conhecimento.... que FALTA DE CHÁ!!!!!!!!!! Como muito bem diz o A., talvez ela seja da opinião de agora passarmos a referirmo-nos ao Paulo Gonzo como aquele cantor coxo, por exemplo? É mesmo de bradar aos céus!!!!!!!!!!!! Será que se pode fazer um abaixo-assinado para essa senhora passar a ser obrigada a usar uma etiqueta colada na lapela a dizer "imbecil", assim nos próximos 20 anos??? Era mesmo o mínimo que ela merecia!

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  3. Realmente!!! Muito bom o seu e-mail!!!

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  4. Muito bem, Rafa! Sabes que te apoiei desde o início com essa carta. É de facto, lamentável estas coisas surgirem em revistas de renome. Pior é mesmo, e acontece muito, haver «pseudo-jornalistas» a quererem armar-se em tradutoras «competentes». Não sabe não traduz, não «rouba» artigos a outros jornalistas, pois não acredito que tenha pedido «licença» à Robin Givhan para traduzir o seu artigo. Também não faço ideia como isso normalmente se processa neste âmbito jornalístico, posso estar a falar às cegas...anyway, mesmo que o artigo tenha sido escrito em cima do joelho, que é o que parece, não é desculpa, profissionalismo acima de tudo já que é o nome da redactora e da revista que está em jogo! E se eu fosse a senhora «Marta Pablo» e recebesse esta tua carta, corava a cada frase que lesse e só desejaria desaparecer do mapa uns tempos. Lindo, lindo, seria ela responder-te ! Gostaria de ver, até porque quem cala consente! :p

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  5. Isto é classe Rafa.

    Tive uma Colega estagiária que falava tanto de inglês como eu de...italiano, vá. Ou se Holandês. A primeira vez que traduziu um texto foi corrida à vassourada pelo meu antigo chefe. O prob destas revistas é terem 2 ou 3 nabos LOCAIS que não sabem falar inglês pq a casa-mãe americana acha que em termos de números, já há empregados suficientes per capita.
    Lamento, mesmo.
    Beijoquinhas

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  6. Muitíssimo bem, Rafaela. Certamente que a grande maioria dos leitores da Elle se sentiram chocados e incomodados. Ainda bem que fizeste ouvir a tua indignação, e duma forma correctíssima, elegante e assertiva. Bravo!

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  7. Brava, Rafa! It's sad to see the poor outcomes of the econimization of editorial staff - now we've learned that it also might be dangerous. Thank you!

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  8. At least you did the work for her. Se fosse nos USA, ja via a Elle chegar à tua casa, e encomendarem os teus serviços de tradução no intuito de serem exemplares.

    Estou deserta de ver uma resposta, que seja, à tua carta, que seja no site ou numa proxima edição (mas teras de mostrar aqui, visto que não posso comprar a Elle PT).

    Baci baci! ;)

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  9. PS: ah! como te tinha dito no FB e repito aqui, além do erro/falta de senso na tradução, mesmo que a palavra "negra" tivesse sido a escolhida, a posição na frase é chocante PARA MIM. A primeira caracteristica fisica ou descritiva de uma pessoa não deveria ser a sua cor de pele. "Olhe, aquela estudante branca/arabe/negra/latina é mesmo dedicada...". WTF. Pronto, fui!

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  10. Enfim, assim está o "jornalismo" em Portugal. É uma pouca vergonha.
    Concordo plenamente com o comentário anterior. Mesmo que tivessem optado pelo termo "negra", será mm um ponto relevante?
    Estou ansiosa pela resposta.
    Vou fazer link no meu cantinho, ok?

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  11. A maioria dos meus amigos de cor (preferes que chame assim?) prefere o termo preto. Eu sou branca, eles são pretos. Eu sou baixa, eles são altos. Whatever... o racismo está nos olhos de quem vê. Achas que alguém de "raça negra" se importa com isto?

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  12. Estou chocada que um artigo assim possa sair numa revista como a Elle. Nunca imaginei que tal fosse possível. É realmente vergonhoso.
    Parabéns pelo post e pela carta, está fantástica!

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  13. Não sei como é que uma revista deste gabarito contrata pessoas, ditas "jornalistas" que não sabem redigir um texto, que ainda por cima foi traduzido talvez por algum site de tradução online... e pior ainda que tudo o resto....nem o trabalho de revisão teve!
    Se o tivesse sido, não sairia esta vergonha tanto linguística como de conteúdo.
    Há muita gente com capacidades mal aproveitadas por esse país fora...que até trabalha precáriamente fora da sua área para dar lugar a gentinha assim aparecer...

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  14. Acho excelente que tenha tomado a iniciativa de enviar o email, pois, quando calamos a nossa indignação, a tendência é para a repetição do erro - ou seja, quem cala consente.
    Não sei como é que entre revisores, editores e afins ninguém reparou que o texto, para além de parecer ter sido traduzido automaticamente, continha expressões ofensivas.

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  15. @ Anónimo nº1 - Não, não gosto do termo "de cor". Acho que até é cómico, visto que, embora seja um cliché, toda a gente tem uma cor, certo?
    Os teus amigos pretos devem gostar que lhes chames assim, porque devem ser pessoas do teu foro íntimo e aí tudo bem. Eu, pessoalmente, não gosto mesmo. Mas se um amigo íntimo disser preto não fico chateada.
    Mas não gosto de comprar uma revista, ler um artigo sobre a caríssima Michelle Obama que está a democratizar o mundo da moda e ver que a chamam de preta duas vezes.

    Atenção, repito novamente que não estou a acusar a Elle de ser racista ou preconceituosa. Não acho mesmo que seja esse o caso, na minha modesta opinião. Creio apenas que a pessoa que redigiu o artigo está longe de ser boa profissional pelos 3 erros que citei na carta.
    Obrigada.

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  16. Realmente todo o artigo está cravejado de erros de tradução. O da idade média é, de facto, gritante! Lamentavelmente, apenas espelha a realidade tão comum de que qualquer pessoa que fale inglês sabe traduzir. Gostei muito da resposta e ainda bem que há pessoas que se dão ao (excelente) trabalho de "protestar" :)

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  17. Inacreditável! Estou chocada com a Elle, nem parece fazer parte da revista.
    Adorei a tua carta, estou curiosa para saber se responderam...

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  18. As minhas palmas por esta sua carta. Bravíssimo. Ainda bem que ainda vamos tendo pessoas com paciência e indignação suficiente para protestarem e reclamarem, quando algo não está certo.

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  19. Parabéns!

    Joana Richard

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  20. Acho que o seu P.S. era desnecesário. O que escreveu é universal, e a cor ou profissão de quem escreve é irrelevante :)

    Eu sou branca e trabalho com Internet, e poderia ter escrito o seu post (se tivesse jeito para escrever e se comprasse a Elle portuguesa :)

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  21. Este post está em destaque na Homepage do SAPO, tab "Radar" :)

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  22. Jonas, muito obrigada pela referência. Estou a sentir-me quase como uma estrela pop! :)

    Obrigada!

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  23. Vocês são todos uns saloios!!! è preto é preto, é branco é branco e mainada!!! É por essas e por outras que se um branco bate num preto é racismo, se um preto bate num branco é desigualdade social... Chamar preto a alguém só é ofensivo dependendo do contexto. Não sou preto mas tenho uma quantidade considerável de amigos pretos e não temos problemas nenhuns por eu lhes chamar pretos!!! Vocês têm é a mania!!!!

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  24. Anónimo, um grande LOL para si.
    Só lhe pergunto uma coisa: alguma vez leu numa revista/jornal escrito alguma coisa do tipo "branca, 65 anos, Maria Cavaco Silva é uma excelente primeira-dama"?
    Não, pois não? É exactamente esse o meu ponto.

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  25. Rafaela,

    Antes de mais, a minha declaração de interesses: sou filho de uma das visadas pela carta que enviou. A julgar pelo último comentário, o que a incomoda verdadeiramente é a referência à cor da Michelle Obama, mais do que o adjectivo utilizado, o que compreendo, embora me pareça algo exagerado. Afinal de contas, não se trata de uma mentira nem sequer de um insulto directo ou velado, mas sim de uma característica da senhora, tal como o físico atlético ou a sua elegância.

    Já quanto ao facto de a palavra utilizada ter sido "preta" e não "negra", não creio que seja um crime de lesa-majestade, sobretudo porque não foi utilizado com intenção pejorativa. Agora, também é verdade que os brancos (como eu) não sentem na pele o racismo de que os negros são alvo com frequência, razão pela qual tento compreender a sua indignação. No entanto, e acima de tudo, aplaudo-a por ter redigido a carta de forma construtiva, porque como profissional que é, certamente saberá que todos nós erramos. Já não o faço pelo facto de a ter publicado num blog, mas tento entendê-la. Espero, no entanto, que tenha também o costume de elogiar os artigos que gosta de ler, prática rara neste país, onde o elogio escasseia e a crítica é constante.

    Concluindo, a minha opinião pessoal: acho o vocábulo "negro" bastante mais carregado e pesado do que "preto", embora reconheça que a sociedade portuguesa não concorde comigo.

    Peço-lhe desculpa pela extensão do comentário, e desejo-lhe as maiores felicidades.

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  26. Caro Rosé Mari, enviei-lhe um comentário para o seu blog. No entanto esqueci-me de uma última coisa: prometo que quando vir um extraordinário artigo na ELLE (ou em qualquer outra revista) irei escrever sobre o mesmo. E ficarei a aguardar o seu comentário. :)
    Obrigada novamente.

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  27. é bom saber que há pessoas bem-educadas e com presença de espírito neste país! obrigado e muitos parabéns.

    p.s.- não podia estar mais de acordo quando diz que as palavras têm muita força.

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  28. Adorei o e-mail que escreveu! Muito correcto! Já agora, a título de curiosidade, obteve resposta? A Sra. Marta Pablo deveria, certamente, publicar um pedido de desculpas ou uma errata! Isto é completamente inadmissível! Também li o artigo e, para mim, naquele momento, pensei que a revista ELLE tinha perdido metade da credibilidade que ganhou ao longo do tempo neste país.

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  29. Muitos parabéns. Muitas vezes, apetece-me escrever a determinadas empresas (de vários ramos) a contestar ou simplesmente expor o meu ponto de vista e acabo por me ficar pela intenção. Geralmente, desculpo-me com falta de tempo (desculpa esfarrapada, eu sei). Passar das intenções aos actos é importante e obriga os profissionais a reflectirem sobre a forma como trabalham. Fizeste muito bem.

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  30. E como o que importa é espalhar...

    http://reporter.clix.pt/amarelo/michelle-obama-preta.html

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  31. Gostei muito de ler este post. Deixo os meus comentários:

    Chamar preto em vez de negro ou de côr não me choca. Considero as últimas 2 expressões ridículas. Vejo da mesma forma como chamar mulher ou esposa. A forma como a frase está construída sim é ridicula: " Preta, 46 anos Michelle Obama (...) E a tradução google translator é chocante de "Middle Age Woman" para Mulheres de Idade Média (supostamente mulheres de meia idade) há um mundo de diferença- Pensar que uma jornalista que trabalha para uma pubicação como a Elle faz traduções destas é escandaloso.

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