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Ensaio sobre a Falsidade

16.11.10

Todos as pessoas têm um bocadinho de falsidade.
Por vezes manifesta-se logo na infância: se calhar somos mais simpáticos para aquela menina que se mascara de dama antiga no Carnaval e que usa sapatos verniz ou então emprestamos o apara-lápis àquele menino que ouvimos dizer que tem uma casa com piscina, na esperança de obter uma tarde bem passada quando o calor apertar. 
Há quem adquira a falsidade na adolescência: convidamos para o nosso aniversário no restaurante da moda aquela rapariga que tira excelentes notas e que, perante toda esta simpatia e solicitude, nunca nos iria recusar um pequeno pedido de ajuda no teste de Físico-Química, se estivéssemos mesmo muito aflitos. 
Ou então acontece sermos falsos, quando somos jovens adultos e estudamos na universidade. Todos sabemos que o networking é uma coisa importante para o futuro, por isso convidamos ocasionalmente para uma noite de copos a filha daquele empresário e dizemos-lhe que as calças ficam-lhe super bem. Elogios são o melhor cartão de entrada para a intimidade com o outro. E lá prosseguimos todos contentes como se tivéssemos descoberto a pólvora, porque finalmente conquistámos a atenção de uma pessoa relevante.
Se por acaso houver quem consiga manter-se durante estas três fases da vida incólume a este jogo de interesses e seduções, eis que na vida adulta não há hipótese de fintar a falsidade. Refiro-me ao mundo do trabalho. Primeiro, candidatamo-nos a um trabalho. Fazemos uma breve pesquisa sobre a empresa e vamos à entrevista, com aquele misto de terror e esperança. A necessidade de pagar contas ao final do mês é um estímulo para a nossa capacidade de bajulação, pelo que reiteramos o quanto gostaríamos de trabalhar para eles e o quanto seríamos importantes para aquela empresa.
Depois alguém nos contrata e ficamos aliviados porque alguém "caiu na conversa". E estamos safos. Passados dois ou três anos, aquele trabalho e aquela empresa pela qual teríamos dado um dente da frente no passado, torna-se insuportável. E voltamos à caça. De algum outro trabalho que nos faça vibrar e sorrir, nem que seja apenas nos primeiros dois meses. E começa a dissimulação. 
Escrevemos um e-mail com uma candidatura magnífica quando estamos numa hora morta no nosso escritório actual. Há até quem cometa a burrice (não há outra palavra) de enviar com o e-mail da empresa. Depois a empresa desejada telefona-nos. Pedimos licença aos nossos colegas com um ar comprometido, murmurando "É a minha tia, vou para a varanda". Depois combinam-se reuniões e entrevistas após as 18h00 para que ninguém desconfie de nada.
Se entretanto o nosso chefe actual nos chama para reunião e nos pergunta como vão as coisas, dizemos com todo o carinho: "Estou muito feliz, estou contente com esta posição". Mal ele vira as costas, surge no nosso rosto aquele sorriso matreiro como quem diz "Daqui a pouco já não me pões a vista em cima, seu cromo de merda". 
Quando finalmente nos fazem uma proposta de emprego formal e avaliamos todos os prós e contras e, finalmente, decidimos ir embora de um trabalho que não nos faz sorrir para um local onde depositamos todas as nossas expectativas e esperanças, redigimos a carta de demissão e convocamos uma reunião com o chefe. Muitos agem com indiferença e com pouco drama, porque esta é a lei natural da vida, mas acredito que todos sentem que foram traídos. 
A verdade é que, mais cedo ou mais tarde, todos acabamos por trair alguém que em nós confiou.
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6 comentários:

  1. Felizmente, passei as três primeiras fases. Não sou muito boa a dar sorrisinhos amarelos.
    Já na parte do trabalho, terás alguma razão. Been there, done that! Agora que tenho clientes, em vez de patrões, a bajulação é capaz de ter aumentado. :-p
    Mas enquanto trabalhei por conta de outrem nunca fui capaz de me demitir, sem dizer que estava descontente e explicar porquê. E por muito maus que os patrões fossem (e que nenhum estivesse de facto interessado em mudar o que estava mal, para eu continuar a trabalhar lá, ainda que não me quisessem perder), todos eles agradeceram a minha sinceridade. É sempre gratificante, digo eu.

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  2. "Quando finalmente nos fazem uma proposta de emprego formal e avaliamos todos os pós e contras e, finalmente, decidimos ir embora de um trabalho que não nos faz sorrir para um local onde depositamos todas as nossas expectativas e esperanças, redigimos a carta de demissão e convocamos uma reunião com o chefe..."


    ...para o dia seguinte, e passas a tarde a chorar baba e ranho, enfiada dentro de um quarto de onde nao se quer sair! lolololol

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  3. Eu conheço quem foi falso toda a vida e conheço tb quem o seja face às circunstancias, é que ás vezes é impossivel não ser...

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  4. Aguardo ansiosamente que um pingo de falsidade se apodere de mim em momentos chave, para não tornar a cair no ridículo de responder com sinceridade a algumas perguntas durante entrevistas de emprego, como "sente-se confortável se tiver de trabalhar todos os dias isolada num gabinete duma cave, sem janelas, e sem normalmente ver nenhum dos colegas o dia todo?", ou "se conseguir este emprego, vai continuar a procurar emprego na sua área?". Ou sempre que se discorda do chefe, que é muito frequentemente, e que penaliza nas avaliações, prémios e progressão na carreira por "essa personalidade contestatária e demasiado reivindicativa que lhe é prejudicial"... Ah, como gostava de ser uma pessoa crescida de vez em quando!

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  5. @Helena, obrigada pelo comentário. Na verdade, coloquei o texto na primeira pessoa do plural, porque acredito mesmo que, num caso ou noutro, todos acabamos por vivenciar este tipo de episódios, ou pelo menos, sentimento.
    Ser freelancer dá essa liberdade de não ter de "kiss anyone's ass", mas eu sentiria falta da luta diária, sabes? De me esforçar para subir na hierarquia. (Agora que trabalho numa empresa, estou louca para ser freelancer, uma autêntica esquizofrenia profissional). Beijo!

    @Miss, eu sei que foi duro, eu sei. Porque tu não mudaste só de emprego. Mudaste de casa (snif, snif, deixaste-me aqui all alone). Mudaste de país (Madrid me mata, pero' Lisboa es fantastica)

    @hierra, concordo plenamente com a impossibilidade de não o ser...daí o meu post algo cru. :)

    @Ventania, ai, ai, mulher! (Suspiro enamorado pelo teu dom literário)
    Apesar de eu achar que todos devemos e podemos ser um bocadinho falsos em determinadas ocasiões, são pessoas como tu que me inspiram.

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  6. Tens muita razao Rafa, muita razao...

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